Por Mario Wiedemann
Resultado da resistência cultural dos últimos cinco séculos, a rica e internacionalmente conhecida cultura dos ‘Povos do Xingu’ é também possível a partir do processo histórico de implementação do Parque Indígena do Xingu, em 1961, no Governo Jânio Quadros. Sua formação e gestão abrem um imenso parêntese da história do Brasil.
A formação e consolidação do Parque do Xingu formalizam o avanço das frentes bandeirantes, ainda no final do século XVIII, nas terras do Mato Grosso e a liberação das mesmas para a expansão da pecuária e da monocultura agrícola, repetindo estratégias de colonização e expropriação de um território plenamente ocupado por grupos indígenas no Brasil havia mais de 1000 anos. O Parque engloba territórios ancestrais e territórios arqueológicos que dialogam com as ocupações históricas vivenciadas pelos irmãos Orlando, Cláudio e Leonardo Villas Bôas, sertanistas, os três tiveram atuação na saga da ocupação da região e hoje integram as narrativas de contato. (BASTOS, 1992)
O Parque Indígena do Xingu, com 2.642.003 hectares, está integralmente inserido na Amazônia Legal, no Estado de Mato Grosso, em área de transição entre o Cerrado e a Floresta Amazônia. Suas características ambientais são particulares, com floresta tropical nas áreas mais elevadas associada a campos abertos, com áreas inundáveis, grandes lagoas e rios, ligadas por canais, com grande piscosidade. Paisagens que são habitadas por grupos de trajetórias também diversas e são estes, que atuam diretamente da defesa de seu território em conjunto com as equipes da FUNAI (Fundação Nacional do Índio), nos postos de vigilância indígenas (PVI).
Dezesseis grupos indígenas (com nome atual de Terra ou Território Indígena do Xingu) com trajetórias e línguas diversas e que congregam aspectos culturais, protegem o Parque Indígena do Xingu que está agregado a outras três Terras Indígenas adjacentes, demarcadas posteriormente. A T.I. Pequizal do Naruvotu, a T.I.Wawi e a T.I.Batovi. Juntos, protegem cerca de 2,8 milhões de hectares e aproximadamente 8.000 pessoas. (ISA- Instituto Socio Ambiental - Visitado em 08/2021). Trata-se de uma articulação profunda em defesa de território e, de certa forma, uma dádiva ao planeta e seus 8 bilhões de habitantes. O Parque Indígena do Xingu engloba, em sua porção sul, ou na região conhecida como Alto Xingu (o alto curso do Rio Xingu e seus formadores) os grupos Kalapalo, Aweti, Kuikuro, Kamaiurá, Matipu, Mehinako, Nahukuá, Waurá, Yawalapiíti, Naruvotu e Trumai. Os povos, Ikpeng (Txicão), Kaiabi, Kĩsêdjê, Tapayuna e Yudja estão a Norte do Parque.
Muito embora esses povos componham o que os linguistas chamam de sistema cultural alto-xinguano (FRANCHETTO, 2011), estão localizados mais próximos da foz do Rio Xingu e alguns deles foram incorporados em momento posterior à formação do Parque. Nesse processo de formação, muitos grupos tiveram que mudar o local das aldeias. É um território cultural que transforma-se cotidianamente, é plurilíngue e diverso, tem como elemento mágico particular, nesta história de longa duração, o Rio Xingu. Rio este que nasce no planalto central brasileiro e percorre mais de 1900 quilômetros até desembocar na margem direita do Rio Amazonas, no estado do Pará. Tem grandes afluentes que são como vias de conexão de diferentes paisagens, entre os quais o caudaloso e extenso Rio Culuene, habitat muito antigo de vários grupos étnicos. Essa diversidade cultural é produtora e produto do contato intercultural de uma história de longa duração que traçou os rumos desde a invasão das Américas no século XV. A violência e a disrupção colonial, conforme aponta Fausto (2005), marcam, de forma severa, a trajetória dos grupos nativos das américas, criando uma dinâmica de mobilidade e apropriação cultural de diferentes ambientes que tinham como objetivo a vida. Essa dinâmica permitiu cenários de contato entre esses grupos, criando centros de convivência territorial com diferentes línguas. Deve-se ter claro que é a atitude ativa da alteridade na relação com os demais seres vivos da paisagem, que permitiu a existência dessa ‘beleza’, complexidade cultural e cosmológica. (CASTRO, 1996)
O xamanismo é uma prática dominante entre os povos ameríndios. Os rituais são acompanhados de diferentes expressões desta relação. Os adornos corporais, as pinturas com urucum e jenipapo, a dança, a plumária, as máscaras, a cestaria, e a cerâmica, além de uma vasta cultura material. As lentes etnográficas revelam a dança e o toque sagrado das flautas, presente em muitos grupos, como as flautas Waurá e Kuikuro (MONTAGNANI, 2016), o xamanismo Kalapalo e Kuikuro (FAUSTO, 2012), os mitos Kamayurá (AGOSTINHO, 2009; BASTOS, 1995). A comida e a praça são espaços de troca e criação e devem ser entendidos como um grande “sistema cultural”, antigo e atual. Os fragmentos de cerâmica, espalhados na superfície das aldeias xinguanas antigas e recentes, fornecem claras evidências da continuidade cultural ao longo de quase mil anos, não somente da tecnologia (HECKENBERGER, 2005; BASTOS, 1995; NETO,1999), mas também da orientação econômica básica na pesca e na roça de todos os povos alto-xinguanos.
A vida dos homens, mulheres e crianças é envolvida no preparo do plantio e da colheita, tarefa que envolve, em geral, todos da aldeia e, em eventos maiores, membros de outras aldeias e grupos. Majoritariamente, a mandioca e a pesca compõem a alimentação dos grupos. A pesca é um espaço diverso e ocorre em território amplo, onde se comem diferentes seres vivos dos rios, lagoas e canais através de estratégias variadas, como o timbó, a rede, o arco e flecha e a zagaia.
Outros produtos de plantio são a batata doce, milho, algodão, pimenta, tabaco e urucum. Plantam bananas, melancia, mamão e limão. As atividades de coleta, a caça e preparo dos alimentos são divididas entre os membros do núcleo doméstico. As plantas, alimentares, de uso ritual, as plantas medicinais e outras necessárias à vida, são manejadas há milhares de anos e muitas delas estão presentes em nossa alimentação até hoje, como o pequi que integra o cotidiano, os rituais, a mitologia, os gêneros e a paisagem. (SMITH & FAUSTO, 2016)
Cabe aqui, por fim, chamar atenção para a diferença entre os povos no que tange a língua, evidentes através das palavras, que aparecem nos textos, pois os povos que habitam as margens do Rio Xingu foram um dos mais estudados pela etnologia brasileira e internacional. De origem Tupi-Guarani, Macro-Jê, Karib e Aruak, deve-se entender que a pronúncia dos termos é diferente da pronúncia do português, do branco e entre os troncos. Uma letra pode ter outra fonética, o que pode inspirar o leitor a procurar informações já disponíveis sobre esses grupos, pois sua complexidade não cabe neste texto.
Fotos de Renato Soares da comunidade indígena Kamayurá