Por Juliana Monachesi

Extrato do livro Sergio Lima, Imagem-Acontecimento

 

Imagine que você pudesse acessar os bastidores e toda a agitação de algum dos grupos ou movimentos das vanguardas históricas no momento mesmo de seu desenrolar. Essa experiência seria o oposto de ver um movimento catalogado, organizado em displays museológicos, investigado e dissecado durante décadas, em suma, morto. Como seria testemunhar no calor da hora as criações, os debates, os afetos e desafetos do núcleo duro de um organismo estético vivo, mas surgido há um século?

 

As vanguardas da virada do século 19 para o 20 são conhecidas e estudadas por meio dos livros de história ou das exposições, são acessadas nos acervos ou nos arquivos que o aparato institucional nos legou, segundo os critérios de então (mas constantemente atualizados e revistos) acerca do que deve ser guardado ou não, do que entra para o cânone ou dele fica excluído. A narrativa histórica, em geral, faz as devidas ressalvas, como, por exemplo, afirmar que algo que conhecemos como um movimento de vanguarda na verdade não foi exatamente isso, porque seus integrantes nem sequer consideravam que houvesse coesão suficiente entre as propostas para configurar um grupo etc.

 

Desse modo, qualquer tentativa de abarcar o que teria sido o Impressionismo, o Cubismo, o Expressionismo ou o Dadaísmo, sobretudo no contexto atual de revisionismo histórico com vistas a privilegiar outros protagonismos, está fadada, de antemão, ao fracasso completo. Algo diverso ocorre com o Surrealismo. E não se trata do proverbial déficit de características para configurar um “movimento”, já que este tem manifesto de fundação — e subsequentes —, tem grupos constituídos em diferentes partes do mundo (que não se restringem ao eixo eurocêntrico e estadunidófilo), entre outros requisitos. A diferença é que o Surrealismo não termina com o fim das vanguardas históricas. Segue vivo e operante.

 

Há quem faça, sobre ele, a ressalva de que é mais que um “movimento”, porque é uma epistemologia, um estado de espírito, uma maneira de ver e vivenciar o mundo. Assim como se diz, também, do movimento que, genealogicamente, lhe dá origem filosófica, o Romantismo. André Breton afirmou que o Surrealismo é a cauda preênsil do cometa romântico. Michael Löwy, um surrealista atuante hoje, dedica um livro inteiro ao assunto, auspiciosamente intitulado O Cometa Incandescente. Hal Foster, em seu O Retorno do Real, localiza a produção de fundo psicanalítico de nomes como Andy Warhol e Gerhard Richter, na linhagem do Surrealismo e, antes, do Romantismo. Importante sublinhar que, diferente do uso corrente das expressões “romântico” ou “surreal”, aqui se circunscrevem as vertentes de Romantismo e Surrealismo alinhadas à rebeldia, à revolta e à revolução. 

 

Sergio Lima milita no Surrealismo desde o fim dos anos 1950, tanto que na década seguinte frequenta os encontros do grupo de Paris. De volta ao Brasil, Lima funda, com outros artistas e intelectuais, o Grupo Surrealista de São Paulo, em 1965, que dois anos depois realiza a 1ª Exposição Surrealista, com o apoio declarado de André Breton, Elisa e do grupo de Paris, que por isso ganha a designação oficial de 13ª Exposição Internacional do Surrealismo. Tamanho foi o envolvimento de Sergio Lima nas realizações do movimento brasileiro, que logo o escritor e artista assumiria também o papel de seu principal cronista no Brasil. É conhecida a sua tese de que o Surrealismo foi mal recebido, ou não recebido, entre os modernistas dos anos 1920, “quando imperava a cunha nacionalista e sua política cultural do ‘Brasil brasileiro’, isto é, da monocultura então vigente. Enquanto movimento revolucionário e formador do espírito libertário, o Surrealismo também se fez presente aqui”, escreve o artista em uma de muitas cronologias que organizou sobre o movimento no Brasil.

 

Entre nós, sobretudo no eixo Rio–São Paulo, as movimentações do Surrealismo costumam ser organizadas por Sergio Lima em quatro momentos distintos, “seja por implicações sociopolíticas, econômicas e culturais, seja pela presença de personalidades decisivas para sua afirmação”: o primeiro período (1921-1959) estende-se da raiz primitivista até a presença de Benjamin Péret e Maria Martins (Péret esteve duas vezes no Brasil, em 1929 e 1955, e a “presença” de Martins refere-se ao retorno da artista ao Brasil e suas primeiras exposições, como a de 1950 no Museu de Arte Moderna de São Paulo). 

 

 

O segundo período (1961-1984) começa com a viagem de SL a Paris, onde convive e trabalha com o grupo parisiense, e as subsequentes pesquisas que realiza sobre as estadas de Péret no Brasil. Da organização do núcleo de São Paulo e da 1ª Exposição Surrealista, este ciclo prossegue em ações e publicações do grupo com regularidade durante três décadas, como a revista A Phala. O terceiro período (1985-1999) começa com a Semana Surrealista de 1985 e gira em torno do segundo grupo brasileiro, com membros de São Paulo e Fortaleza (1990-1999). O quarto período compreende, desde 2001, exposições e publicações, além da “retomada da questão do cinema e da imagem nova”.

 

A revolta romântica, de acordo com Lima, que Herbert Marcuse denominou “a grande recusa”, relembra ele, era a recusa do cientificismo, do progresso, da industrialização, da economia da quantificação de tudo, da fetichização, da modernização imposta, ou seja, daquilo que foi defendido como facilitador da vida humana e se transformou em monstruosidade. “Recusa daquilo que os ocultistas chamam de reino da quantidade”, em suma, que é o reino da pouca realidade dada. A esse reino, o Surrealismo opõe o seu maravilhamento com o mais real, o sobrerreal, ou o suprarreal, e tem como essência a questão do humano, daí seu interesse pelo mundo dos sonhos, da infância e dos mitos (ou de todas as culturas antes denominadas “primitivas”, que hoje seria mais correto designar como as culturas dos povos autóctones dos continentes americano, africano e da Oceania). 

 

A IMAGEM DE UM HOMEM PARTIDO EM DOIS PELA JANELA 

 

Um passeio pela produção visual de Sergio Lima obrigatoriamente nos leva a essas três esferas: da infância, onírica e mitológica (ou ritualística). “A minha primeira infância foi na fronteira do Sul, fui com 1 ano para lá e voltei com 6 anos para o Rio de Janeiro. Em Dom Pedrito, que fica entre Porto Alegre e Pelotas, onde moramos, as óperas e os grandes espetáculos que iam para Montevidéu, e depois Buenos Aires, passavam por lá. Tinha um cinema e um teatro bem grandes, então vi espetáculos de circo, de magia, vi filmes impressionantes”, relembra. Em O Palhaço, desenho de 1956, ele retrata um picadeiro psicodélico, em que a figura do trapezista se resume a um membro disforme com figurino de poás, confrontado, em seu voo, com uma boca que devora a rede de segurança.

 

Os primeiros desenhos de sonhos nos transportam a uma infância intensa e dramática. “Muito pequeno, eu tive acidentes fortes, me jogaram em uma tina de cal do tamanho de uma sala, me lembro que era muito gelado. Fui levado roxo e espumando para o pronto-socorro. Minha mãe pensou que eu fosse morrer”, conta Lima enquanto observa A Nadadora de Minha Cama (1956), em que uma figura quase desencarnada flutua no mar, os pés com nadadeiras de peixe. A água tornou-se motivo de pavor e o mergulho ficou restrito aos sonhos, já que o artista nunca aprendeu a nadar. Essa experiência do pavoroso permeia as obras iniciais, que estão em contato muito visceral com os primeiros dramas vividos por ele. “Em Dom Pedrito tinha muito (o vento) minuano, porque era mais ou menos de frente para o Pampa. A gente foi morar na Vila Militar, era um sobrado recém-construído, estavam fazendo a vila, por isso ainda tinha essa tina de cal e coisas de construção, então a casa tinha janelas novas, tudo novo. Uma noite, minha mãe esqueceu de fechar a janela e pela manhã ela estava caída no jardim, o vento tinha arrancado a janela.” Ainda que a janela quebrada não figure em uma obra específica, podemos ver a força dessa imagem fundante nos fragmentos de corpos que povoam seus trabalhos, como num aceno inconsciente à frase da qual Breton não se lembra bem, mencionada no Primeiro Manifesto (1924), que teria se chocado contra a vidraça ao irromper uma noite na mente do artista francês, “a imagem de um homem partido em dois pela janela”. 

 

Em A Praça Equina (1956), a cabeça e o corpo do cavalo estão cindidos, sugeridos em dois monumentos na praça deserta, acompanhados apenas das respectivas sombras. As ancas supostamente equinas, no primeiro plano da obra, foram dispostas sobre um pedestal em formato de estrela. A imagem se duplica infinitamente ao longo da trajetória do artista, como num mise en abyme que salta para fora da imagem, em vez de nos jogar para dentro dela. Nos desenhos de borboletas, que integram a série Aspectos da Fauna Insular (1957), vemos essa imagem transbordar do referencial, e vamos reencontrá-la no díptico Visão Dupla (1957) – duas pinturas que à primeira visada representam a mesma coisa, com uma leve alteração do ponto de vista. “O duplo romântico não é o duplo psicanalítico, embora a psicanálise insista em dizer que é. O duplo romântico tem a ver com o andrógino primordial, o Adão ocultista”, explica Lima. Enquanto o conceito de duplo psicanalítico faz referência a algo que falta, a projeções de elementos reprimidos, o duplo romântico projeta um sentido de cerimônia, ou uma proliferação de sentidos não operacionais referentes ao humano. “Existe aí uma relação de corpo, de alma e de sentido, que nos leva de volta para a festa, para a cerimônia. O corpo feminino, por exemplo, é muito mais cerimônia do que o do homem. Digamos que o homem é sem cerimônia”, diverte-se. 

 

 

“No processo de modernização, não há mais rito, cerimônia, festa, não tem duplo, porque o duplo romântico não é do mesmo, é do outro. Na psicanálise, é do mesmo, vide Deleuze, que diz que o mesmo é a diferença do outro. Não é, não. O outro é uma coisa, alteridade é a nomenclatura que usam para falar disso. Toda a narrativa atual distorce o termo para coincidir com os propósitos da narrativa. O outro é um para os primitivos; em alemão, o outro é o hóspede. Esse hóspede é recebido sempre com uma festa, com uma cerimônia. Não é complemento, é adversário. Adversidade é uma coisa, alteridade é outra”, ensina Sergio Lima, sempre um tanto hermético. O artista recorre a uma imagem para explicar esse “outro” que está abordando: há uma figura alquimista medieval de adversário que é muito bonita, em que duas mulheres com túnicas, cada uma segurando uma ânfora, em pontos extremos, têm entre elas, no meio do percurso entre uma e outra, um poço ou uma fonte. “Elas andam, como se fosse num duelo, para versar no poço as suas águas. Adversário é quem ade versos, quem ade água na sua fonte. Não é o contrário, o inimigo, você não vai lutar com o inimigo, você vai lutar com o seu outro.”

 

As lutas e os duelos se materializam de formas complexas na obra de Lima, que adota em geral um partido mais subjetivo para colocá-los em cena. Em Fragmentos da Posse de Seu Corpo Noturno (1ª série) XVIII (1957), um osso da bacia que parece preso entre as mãos de alguém, ou abraçado por uma planta carnívora cujas bocas se assemelham a mãos humanas, sustenta a estrutura de uma planta com um quê alienígena que se expande para o alto, em uma nova boca, da qual brota uma flor de antúrio. Tudo se passa no mundo interior, até que chegamos à série Aspectos da Fauna Insular (1957), onde encontramos animais plenamente exteriorizados, em procedimento rumo ao absurdo. “É o ornitorrinco: é um bicho inacreditável, que é feito de uma porção de bichos, é um bicho-colagem, um bicho esquisito. Bicho surrealista”, resume SL. O título da série, segundo ele, refere-se à cultura no Brasil ser vivenciada como um conjunto de ilhas: “Todo mundo conhece a Maria Martins, conhece a Tarsila, conhece o Gomide, o Rebolo, o Visconti, mas não conhece nada entre eles, não conhece o que liga esses artistas”. Cultura insular ou “de canguru” é uma rede que não se comunica. Cultura é resultado das conexões, não de coisas paradas. 

 

Em obra posterior à Fauna Insular, Lima passa a nomear também o que conecta os elementos que ele reuniu na operação colagista, Centaura – Amazona ou Uma Bananeira (1989), mas em toda a série de 1956-57, as relações estão sugeridas apenas nas formas, e são, portanto, mais herméticas, como o leão ou o tigre com tromba de elefante no lugar da cauda, adornada com uma cauda de pavão e chifres, que desliza felinamente com um semissorriso misterioso e o olho como que contornado de máscara, acentuada por uma juba muito arrumada e engomada que confere um aspecto aquático ao felino [Aspectos da Fauna Insular XVI (1957)]. O de número X, por exemplo, é uma espécie de tamanduá com cabeça de pregos. O ex-libris de André Breton era um tamanduá, o que faz pensar que poderia ter alguma relação com um imaginário de Brasil. “Tem isso, que o Péret contava para ele, tem também a relação com a linguagem; em francês, tamanduá é tamanoir, esse ‘noir’ é muito importante”, ressalta SL, “é o romântico noir, o novo noir, les récits noir (as histórias noir), o château noir… Podemos dizer que o Surrealismo não se ocupa dos tons de cinza, mas dos tons de noir”.

 

Os tons de preto são explorados por Sergio Lima magistralmente em seu Retorno ao Selvagem (1957), “aguadas automáticas” feitas com guache, aquarela e tinta-da-china sobre papel, série dá título à exposição de 2007 dedicada à obra de SL na Fundação Cupertino de Miranda Centro de Estudos do Surrealismo, em Vila Nova de Famalicão, Portugal. O retorno do real, aqui, é o retorno ao rito: a partir de manchas all-over, as imagens que se insinuam ao artista ganham materialidade com o uso de guache azul, sobrepondo-se às manchas. São todas figuras rituais, totens e pequenos animais, elementos de cerimônia. As soluções disparadas por essa experiência abriram um percurso diverso para a pintura. Lima comenta que o seu Autorretrato aos Dezoito Anos (1957) funciona como um complemento à série. “Em uma semana, fiz tudo isso. Foi um salto, um saiu literalmente de dentro do outro.” Salto quântico: nas colagens que o artista passa a elaborar, os tons de preto ganham densidades novas, como em A Boca da Rainha (1969), em que a rainha do título, em trajes fúnebres, está encimada pela fotografia de um cavalo branco (morto?), que seria a sua boca. Nas collages, a que Lima dedicou um livro teórico inteiro, de 1984 (Collage em Nova Superfície, editoras Massao Ohno e Parma), são para ele “festa”, linguagem transbordante, insubordinação absoluta.